O acidente que me deu à luz
no fundo, eu sempre soube que morreria cedo
Eu sempre pensei muito na morte, como a criancinha gótica que fui. E algo em mim me dizia que eu morreria cedo. Eu lembro de não fazer planos para a vida adulta - ter filhos? casar? não, obrigada, não vou chegar nisso - e estar completamente tranquila com esse fato, simplesmente porque achava que não viveria tanto assim.
Os anos passaram, essa sensação ficou. Me formei na faculdade (medicina veterinária, caso você não saiba) e estava no início do meu segundo ano de residência, quando a sensação se intensificou e eu tinha CERTEZA que a hora estava chegando. Neste momento da minha vida, eu estava passando por uma depressão fudida, com crises de ansiedade deliciosas que me atormentavam frequentemente, infeliz na profissão e sem nenhuma ideia do que fazer a seguir. Nunca pensei em tirar minha própria vida, longe disso, mas morrer porque “chegou a hora” não estava me parecendo tão ruim assim, entende?
tão fofinha, nem parece que tava surtada
E então aconteceu, no dia 8 de março de 2019. Eu lembro exatamente da data porque era dia da mulher, eu tinha até um bombom no carro que ganhei de algum homem no trabalho. Voltando para casa ao fim do expediente, na rodovia (eu tinha que pegar estrada pra chegar no trampo, isso por si só já era um fim pra mim) um carro resolveu cortar o meu caminho e atravessar a pista, vindo de uma estradinha perpendicular. É difícil de explicar, então desenhei.
desenho não é um dos meus dons, mas dá pra entender, né?
Eu não estava correndo; 80km/h é bem razoável para uma rodovia, meu carro era um kwid laranja que não é exatamente famoso por atingir altas velocidades e eu prestava muita atenção, pois a região era cheia de animais e eu sempre via bicho atropelado. Eu vi o carro, percebi que a inteção dele era atravessar a pista e, pela lataria (sem preconceitos, mas era um paliozinho idoso, não bati num porsche que vai de 0 a 100 em 3 segundos), eu já entendi que poderia freiar o quanto quisesse: não daria tempo dele passar.
E não deu mesmo, atingi em cheio a lateral do carro. O airbag abriu e foi uma das sensações mais bizarras da minha vida, estar em movimento e de repente não estar mais. Ser brecada por algo. Aquele barulho estrondoso de carro batendo em carro e coisa estourando. E foi extremamente rápido! Quando dei por mim, eu só queria sair do automóvel, então eu me ejetei pra fora, nem sei como. E olhei o estrago na frente do meu carro, completamente destruído.
Ninguém veio falar comigo, nenhuma pessoa parecia ciente da minha presença fora do carro. Então eu concluí o óbvio: eu morri! Eu morri e era uma alma penada zanzando pela rodovia. Olhei de novo o carro e falei “graças a Deus, esse problema não é meu!”, afinal, mortos não chamam o seguro ou o guincho ou a polícia. Então eu tava numa boa, rodando por ali e esperando minha vovó Maria aparecer (a única pessoa da minha família que eu tinha perdido até então) ou alguém me levar pro umbral, porque convenhamos que eu não tinha esperança de subir direto pro “paraíso” não.
A vó Maria não apareceu, nenhum anjo, nenhum demônio. Quem veio falar comigo foi um homem visivelmente encarnado, carne e osso diante de mim, me perguntando se eu queria que ele me ajudasse ligando pra alguém - uma mãe, um marido. E eu respondi, displicente “não, moço, eu não tenho ninguém, moro sozinha”. E aí a verdade me atingiu: eu não tinha morrido coisa nenhuma! Eu tava vivíssima, o carro era sim problema MEU e eu tinha que achar o número do seguro. Eu morava sozinha numa cidade gelada (desculpa, Curitiba, te odeio) e não tinha ninguém que eu pudesse chamar para me acudir naquele momento, então era tudo comigo. E a minha vida era problema MEU, eu não morri cedo do jeito que achei que aconteceria, então eu precisava olhar para tudo o que estava me deixando infeliz e fazer algumas grandes mudanças, porque quando você fica triste por NÃO morrer num acidente de carro, isso provavelmente significa que tem algo muito errado acontecendo, não é?
Eu tive uma crise de choro imensa, não conseguia nem falar, parece que todos os meses de depressão com angústia entalada na garganta extravasaram de uma vez numa enxurrada de lágrimas que caíam compulsivamente. Eu não me conformava.
O motivo de terem demorado tanto para falar comigo foi o que aconteceu com o outro carro: eu joguei numa vala! Os três homens que estavam dentro do veículo não se machucaram, foi só um susto, mas um baita susto! Não é todo dia que um carro vai parar dentro de uma vala adjacente à rodovia.
Na sequência de sortes que amenizaram esse acidente, uma surpresa maravilhosa do Universo: meus R1*, que passaram o dia comigo no trabalho pela primeira vez, erraram caminho deles na volta pra casa e passaram por mim. Uma baixinha desolada ao lado de um carro laranja destruído… me reconheceram na hora e pararam para me ajudar. Não sei o que eu teria feito se eles não tivessem aparecido. Eles que me lembraram como que se usa um celular, como que faz uma ligação e como que conversa com a polícia para fazer um boletim de ocorrência. Nesse momento eu percebi que já não estava tão sozinha naquela cidade fria… foi uma sensação maravilhosa, sou amiga de um deles até hoje!
Ah, e antes que você me pergunte, eu praticamente não me machuquei, apesar da gravidade da batida. O kwid é um carro bem seguro, viu? Ele amassa inteirinho para que você não se amasse. O impacto do cinto de segurança no meu esterno me deixou bem dolorida (eu já rachei o esterno uma vez, numa balada, então ele é bem sensível) e fiquei com um roxo na perna, também por conta do cinto. O impacto do airbag no meu rosto também deixou meu nariz doendo por uns dias e foi isso. Eu, que pensei que tava morta, não fiquei nem com hematoma.
A burocracia de abrir um sinistro na seguradora me consumiu por uns dias e recebi 105% da tabela FIPE, o que me permitiu comprar outro kwid, e dessa vez escolhi um vermelhinho. Alguém lá em cima gosta muito de mim, viu?
Depois de botar a parte prática da minha existência de volta aos trilhos, resolvi que era a hora de olhar para o que eu estava evitando há tantos meses. Eu não queria mais ser veterinária e ponto. O que eu faria então? O que fazia meu coração vibrar? Bom… vibradores! Haha
Eu sempre fui apaixonada por sexualidade, um fascínio surreal. Só que eu nem sabia como trabalhar com isso, então escolhi aquele caminho tradicional da faculdade bonitinha e pós graduação logo em seguida. Aos 17 anos a gente não sabe que pode trilhar outras estradas que fogem da rodovia principal. Aos 23, eu já sabia que existiam outras possibilidades, apesar de não conhecer todas (faço 30 este ano e ainda não conheço, na verdade). Sofri o acidente em março.
Em abril marquei uma reunião com uma mulher que trabalhava na área que eu queria, só para saber mais. Em maio, a O Prazer é Todo Seu nasceu.
Ah, não pense que a transição de carreira foi um interruptor: bota pra baixo é vet, bota pra cima é sexóloga. Nananinanão. Eu conciliei os produtos eróticos, os diversos cursos que fiz e a minha pós graduação em sexualidade humana com o meu trabalho como veterinária. Este ano, 2025, é o primeiro desde 2018 em que não pago o CRMV. De maio de 2019 a abril de 2024 eu fui duas, então foi lento, sofrido, exaustivo e tudo o mais. Ainda assim, valeu a pena, viu?
A veterinária não morreu naquele acidente, mas ela renasceu com um brilho diferente. Ela sabia que aquele não era mais o seu lugar, mas permaneceu assim mesmo, porque precisava e porque algo dentro dela dava forças pra continuar. Não sei se dá pra chamar de propósito, mas era bom ter algo que me fazia sorrir no fim do dia. Creio que foi nessa época que voltei a escrever também e eu já perdi as contas de quantas vezes a escrita me salvou de mim mesma.
Hoje, eu sinto a vida me pressionando a fazer mais mudanças. Algumas eu já fiz, na verdade, e talvez em breve eu consiga colocar esse assunto aqui na newsletter, mas ainda não. Preciso deixar bem claro para o Universo que eu tô entendendo os sinais, não precisa me fazer bater o carro de novo, ok?
Gostou de saber mais da minha história? Então que tal compartilhar com alguém que também vai gostar de ler?
*:
R1 significa residentes de nível 1, eu estava no meu R2. Os R1 começam o trabalho em março, e dia 8 foi a primeira vez que foram comigo para conhecer o local onde eu estava. Sorte? Coincidência? Destino? Deixo a seu critério.
Sobre vida-morte-vida
Eu acho bonito saber que estou vivendo muitas vidas nessa vida aqui. Dói, não vou mentir, toda vez que preciso deixar morrer ou matar intencionalmente uma parte minha. Mesmo assim, tento olhar para isso como uma poda, igual faço com minhas platinhas, tirando as partes que já não fazem sentido para que outras vicejem.
Você lida bem com essas mudanças? Vamos falar disso?
O que você sentiu ao ler esta reflexão? Deixe um comentário, tô doida pra saber!
Uaaaaaau!
Você teve uma sorte danada, Lelê reborn. Mando boas vibrações (trocadilho proposital) para ficar livro de surtos e acidentes.